domingo, 16 de setembro de 2018

Tenho evitado postagens polêmicas. Uma, porque a coisa anda tensa por aqui nesse período. Duas, por preguiça de discussões intermináveis.
Mas estou com esse caso entalado na garganta e sinto necessidade de me expressar.

Chorei quando vi as cenas que registram o tratamento a que ela foi submetida.
Fiquei profundamente triste por tentar me colocar no lugar dela.
Embora sejamos ambas advogadas, é impossível imaginar as aflições dela.
Todos os dias são praticados desrespeitos à nossa classe, aos quais também posso estar sujeita, e eles culminam em situações mais intensas, porém não poderia conjecturar que algo semelhante se tornasse real.

Estive em São Paulo no mês passado e tive oportunidade de visitar uma exposição chamada "Histórias afro-atlânticas",  sobre a escravidão no continente americano, no Instituto Tomie Ohtake. Foi lá que tirei essas duas fotos.
Fiquei tão impactada com os horrores que vi ali, que, desde então, coloquei-me a observar e refletir mais sobre a situação do negro no Brasil.
Incomoda-me quase não ver negros nos tribunais e ambientes forenses, assim como me incomodou frequentar restaurantes bons em SP e praticamente não ver negros entre os clientes, mas vários entre os funcionários.

Não estou sugerindo privilégios, mas o nosso país precisa de uma estrutura que dê oportunidades, pois, sem elas, não sairemos deste lugar.
Aqueles que creem - como um dia eu já cri - que a meritocracia tem que ser imediata e absolutamente aplicada no Brasil, e também aqueles que não acreditam que haja preconceito racial, mas sim preconceito social, olhem para a minha colega, Dra. Valéria. Ela é advogada. Estudada. Trabalhadora. Tudo isso não foi suficiente. Ela foi humilhada e algemada injustificadamente, violada em vários direitos inerentes à sua profissão e à sua existência.
Sou jovem, tenho 9 anos de profissão, no entanto não me recordo de precedente semelhante, e seria no mínimo muita coincidência, seria muito "azar", que um caso bizarro assim acontecesse justo com uma profissional mulher e negra.

Quando vi Dra. Valéria no chão e algemada, chorei e me lembrei imediatamente dessas imagens, delas entre tantas da exposição sobre a escravidão que vi mês passado.
O racismo existe, velado ou explícito, estrutural ou direto. É só olhar sem pré-conceitos que você vê.

Li vários textos a respeito desse caso e também vi alguns vídeos. Em nenhum deles senti vitimismo. Os relatos são bem genuínos e totalmente críveis.
Isso me entristece e me motiva a seguir refletindo sobre o quanto precisamos evoluir.
Compartilho alguns trechos da entrevista da advogada Valéria Lúcia dos Santos à Folha e registro minha admiração à sua postura firme e combativa diante de toda a violação sofrida.
Serve como ensinamento para mim e os meus colegas.

"Aí você pensa: Como é a formação da nossa sociedade? Vamos dar os nomes: tem o senhor de engenho, a senhorinha, o capitão do mato. E quem estava no chão algemado? Eu.
O Estado é racista, entendeu? Mas se eu falo isso é mimimi, é vitimismo, por isso que eu não queria atrelar esse caso a racismo, porque eu não quero ouvir essa resposta. A minha luta ali era garantir o meu direito de trabalhar. O racismo vai voltar a acontecer. Eu tento abstrair, ignoro. Mas não dá para tirar o meu ganha pão.
Naquele dia, a juíza leiga já tinha começado a audiência com uma pergunta não muito amigável. A minha cliente também é negra, e a juíza falou: 'vocês são irmãs?'. A cliente respondeu, eu fingi que não tinha ouvido e continuei o meu trabalho.
Episódios assim acontecem quase todo dia, mas muitos colegas não falam porque acham que não vale a pena ou não querem criar problema. Vou dar um exemplo simples. O direito tem várias formalidades. Tem uma cadeira para o advogado e uma para o cliente. Eu sento na cadeira do advogado e os juízes me perguntam: 'a senhora é o quê?'. Ou eles falam para os outros advogados na sala que já os conhece, mas eu preciso mostrar a carteira da OAB. Não adianta eu dar o número, preciso mostrar o documento.
Não vou te enganar, eu entro nas audiências e não me sinto representada. A gente está em minoria na estrutura institucional do Judiciário." - https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/09/o-estado-e-racista-mas-se-falo-isso-e-mimimi-diz-advogada-algemada-no-rio.shtml


Publicado no facebook em 13.09.2018